
Tudo o que vejo parece não ser real. Por todo o lado as crianças foram substituídas, e em cada jardim onde antes se jogava à bola, agora vêem-se cães a passear e a fazerem as necessidades. Onde antes se reuniam os casalinhos, vêem-se agora grupos de jovens que arruínam a própria vida, quer abusando de substâncias e bebidas, quer arruinando as vidas dos outros.
A saudade já me aperta o peito. Estou velho. As rugas salientes são, aliás, marcas que não me permitem esconder a idade. E enquanto eu continuo a arrastar o corpo, jovens raparigas pavoneiam-se pelas ruas, para inglês ver. Que saudade do tempo em que elas não se ofereciam. Era necessário trabalhar para as conquistar, e não havia telemóveis. As cartas. Aquelas cartas de amor que eu lhe escrevi. A saudade. Agora partiu, quarenta e três anos depois, partiu. Deixou-me sozinho, neste mundo que parecia perfeito com ela, mas agora ficou tão estranho. Sigo o meu caminho, no meu canto, sem incomodar ninguém. Sigo a vida, se é que assim se pode chamar ao estado em que se fica quando se aguarda a morte. O medo desta já desapareceu. Agora resta a esperança que venha depressa. Por fora, tremo já um pouco. Afasto-me dos outros. Por dentro, não resta ninguém de quem me afastar, e já não tremo, porque sou só ruínas.
Sei que sou só mais um, sei que sou um anónimo dentro da multidão. Como muitos outros, não fui capaz de me salientar. Uma vida de trabalho, de ganha pão. Uma vida que por vezes roçou o miserável, principalmente durante o regime. A saudade. Os filhos emigrados, os netos desconhecidos. Terei eu ensinado tudo o que sei? Terei eu dado tudo o que tinha? Não sei... Só sei que para mim já é tarde.
Chegando agora à paragem, saio do autocarro, onde uma jovem me havia cedido o lugar. Saio, sabendo que muitos me olham de lado por andar devagar e em dor. Saio, e gostaria de não mais voltar.
1 comentário:
Os jovens de hoje, serão os velhos de amanhã. Não adianta olhar de lado. Todos chegaremos ao ponto em que esperaremos um lugar no autocarro, em que falaremos sem razão, para não sentir a solidão de ser velho. A solidão de ser velho e só, num mundo também velho e só, mas no qual a juventude é que importa e é bonita.
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