segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O Grande Irmão

Salvador vivia no mesmo apartamento desde que se lembrava. Fora ali que vivera a infância e ali vira morrer primeiro a sua mãe, e depois o seu pai, por doença. Tratara deles até ao fim, e isso dava-lhe uma sensação de leveza que não conseguia explicar a mais ninguém, mas sabia que todos sentiam, afinal de que outro modo poderia ser? Em todas as cidades, uma parte dos trabalhadores estava em casa a tratar dos seus, o seu Estado assim mandava. Todos tinham direito a dispensa, sabendo que o seu trabalho para o Estado seria compensado por outro alguém. Sempre fora assim, e assim seria para o bem comum. Em troca desse trabalho, todos tinham direito ao seu apartamento (de resto, diga-se que todas as ruas eram iguais, cheias de grandes edifícios cor de tijolo simétrico e arranjados por forma a em tudo serem iguais), direito a comida que algum trabalhador do Estado fornecia, e direito à sua liberdade. Mas qual  liberdade? Longe iam os tempos em que, em crianças, os seus amigos utilizavam o seu nome em tom de brincadeira, dizendo que um dia ele os salvaria a todos do mal que os assolaria. Porém, chegado a tão avançada idade, começava a desconfiar que o mal não existia. Pelo menos nada na sua vida parecia mal, sendo em tudo igual à do seu colega de trabalho, à do seu vizinho, ou ainda à do seu amigo dono da mercearia do bairro.
Salvador estranhava que tudo fosse igual. Que quer um jovem recém graduado, quer um homem feito perto da sua merecida reforma ganhassem exactamente o mesmo todos os meses. Para além da alimentação e das condições de vida por todos conhecidas, todos os meses os trabalhadores ganhavam uma percentagem da produção nacional, que viria a ser retirada após a reforma pelo estado, por forma a continuar o seu direito a receber alimentação e habitação. Era engraçado, como tendo ouvido falar de dinheiro,  Salvador não sabia o que era pobreza e não sabia o que era riqueza. Era engraçado, que apesar da palavra dinheiro existir, Salvador nunca tenha visto nenhum sinal dele, apenas um cartão plástico com o qual tinha acesso a tudo o que tinha direito, em proporções que embora não o sabendo, eram as ideais para levar uma vida de inocência e sem qualquer estímulo, uma vida de igualdades e sem qualquer tipo de conhecimento para além do Estado.

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